16 dezembro 2009

O jogo do amigo

Durante a minha adolescência passei tardes inteiras com um amigo a jogar Estratégia. Jogava-se num tabuleiro de casas, tipo xadrez mas maior, com a diferença das peças só estarem identificadas pelo próprio jogador. Das peças do adversário só se viam as costas e tanto podia ser um canhão como um soldado ou general.
Todos os invernos, e mais do que uma vez, esse meu amigo passava uma semana de cama a curar repetidas amigdalites que não o largavam.
Era a desculpa ideal para eu dar uns tiros às aulas mais chatas e lá ia eu, que nem um ferrinho, fazer-lhe companhia enquanto inventava novas formas de colocar os meus guerreiros na tentativa de derrotar a armada dele, o que, justiça seja feita acontecia poucas vezes. Mas não se deve contrariar um doente, não é?
Passei todos estes anos a falar disto vezes sem conta e pelo que sei, o jogo dele desapareceu. Fiz tudo para conseguir saber a marca ou o fabricante do jogo para comprar um igual, sem nunca conseguir.
Hoje, numa loja, enquanto esperava numa caixa de pagamento, olhei distraidamente em frente e vi numa prateleira “o” jogo. Ali estava ele, desafiador, a perguntar-me: “Como é, tantos anos para ficares a olhar de boca aberta? Não me levas contigo? Aproveita que é Natal!”
No dia 25 vou abri-lo, jogar com quem quiser fazer-me companhia enquanto espero que os meus filhos tenham idade para me defrontar.
E quem sabe se um dia destes não o vou jogar com o mesmo amigo?

20 setembro 2009

A minha avó Marfida

Faria hoje anos a minha avó Marfida (não é erro no nome, é mesmo assim!). Mãe da minha mãe, valeu para mim mais do que duas mães. Foi ela quem me criou enquanto os meus pais trabalhavam, foi daquelas avós para quem está sempre tudo bem, das que fazem as vontades impossíveis aos netos e que ainda por cima têm sempre uma notinha bem dobrada para dar sem que se peça e sem que ninguém veja.
Foi sempre uma mulher de trabalho. Passou a vida atrás do fogão onde fazia uma muamba, uns rissóis, um arroz de forno e uma açorda de polvo que ainda não encontraram rival. Tratou do marido, da filha, da casa e mais tarde dos netos. Apesar de ter esse papel fundamental, anulava-se sempre para ceder o centro do palco aos outros. Excelente ouvinte, adorava ver a casa cheia e assistir a uma boa conversa numa roda de amigos e nunca intervinha, a menos que fosse directamente incentivada.
Passou o cabo dos trabalhos comigo, manhãs inteiras a subir e descer escadas para me conseguir tirar da cama quando eu decidia fazer gazeta à faculdade. Era até perder a paciência mas mal eu me levantava dava-me todo o carinho de que era capaz.
Em Angola vivíamos em casas vizinhas mas cá em Portugal vivemos os últimos quinze anos da vida dela na mesma casa. Sempre que eu chegava, parava tudo o que estivesse a fazer para me fazer um lanche que ainda hoje me deixa saudades, com torradas e uma chávena de cevada.
Sofreu a vida toda de uma doença óssea que lhe provocava dores em todo o corpo mas estava sempre pronta para ir fazer alguma coisa para alguém, fosse o que fosse, e sem que ninguém lhe pedisse. Noutra vida deve ter sido escrava, subalterna foi com certeza.
Depois dela, algumas coisas perderam razão de ser. E a cevada também. Nenhuma tem o mesmo sabor!
Um beijo, Vó!

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18 março 2009

Fazer o pino no Rio Seco

À porta de minha casa, na Rua da Maianga

Por trás da minha casa em Luanda, havia um parque conhecido por Rio Seco porque ficava junto a uma larga conduta de água em cimento, sem cobertura, que parecia o leito de um rio e que a maior parte do tempo estava vazia.

Lembro-me que existia lá um ringue de patinagem para onde, de vez em quando, ia jogar hóquei com o meu primo Nelito. Sim, que nós tínhamos patins, sticks, bola e queríamos ser jogadores “a sério”. Havia também relvados, baloiços, escorregas e outros brinquedos para os miúdos.

A recordação mais marcante que tenho desse parque foi um braço torcido. Armei-me em artista e tentei fazer o pino mesmo sem saber. Torci o braço e tive dores fortíssimas o resto do dia. Como não passavam, o meu avô Fernando levou-me a um desses milagreiros em vias de extinção conhecidos por “endireitas”, que além de recolocar tudo no seu devido lugar me ofereceu um saco cheio de rebuçados, fazendo quase valer a pena ter deslocado o braço.

Nunca esqueci este episódio, de tal forma que tive sempre medo de voltar a tentar fazer o pino. Ainda hoje não sei fazê-lo. Mas já prometi a mim próprio que quando lá voltar vou tentar. Nem que seja para marcar o meu regresso.

04 fevereiro 2009

Luanda

Já faltou mais para este Regresso.

30 dezembro 2008

Passagem de Ano

É comum dizer-se nesta altura de cada ano “parece que ainda ontem começou e já está a acabar”. Ao invés, acho que foi um ano bem cheio, que levou o seu tempo a passar. Se tentar recordar a última passagem de ano, não tenho a sensação de que tenha sido há tão pouco tempo assim, tantas foram as voltas que a vida deu entretanto.
Foi no frio que saímos de 2007 (não foi, Justos?) e será no frio que sairemos de 2008. E se há um ano atrás esperávamos que as temperaturas não nos incomodassem demasiado, lá para os lados de Vidago, desta vez vamos propositadamente em busca da neve, pelo que “dava jeito” que o termómetro se afundasse a sério.
E porque "ou vai ou racha", a escolha recaiu na aldeia mais alta de Portugal: Sabugueiro, na Serra da Estrela.
Por isso, amigos, aqui ficam votos de Boa Passagem de Ano e uma Feliz entrada em 2009.
Até para o ano. Se se portarem bem, depois conto como foi. :)

21 dezembro 2008

Fogo, A Mota É Linda

É no estado que a foto retrata que se encontra actualmente a antiga fábrica de motorizadas FAMEL e ZUNDAPP, perto de Águeda.
Sinal dos tempos, as outrora marcas de sucesso não são hoje mais do que uma recordação para os maiores de 30 anos, pelo menos. Em breve será impossível ver nas nossas ruas ou estradas as míticas máquinas conduzidas por bigodudos de fato-macaco sujos de tinta, meias brancas com dupla lista colorida, manchas de pó de cimento e kikos fluorescentes na cabeça com o autocolante da praxe a dizer "Racing".
As próximas gerações não poderão fazer a piada de perguntar o que querem dizer as iniciais FAMEL porque já ninguém conhecerá sequer a marca.
Mais do que brincar com os nossos trolhas motoqueiros, faz-me pena ver que uma região inteira desaparece. Viveu durante décadas da metalo-mecânica e hoje é um amontoado de esqueletos espalhados pela paisagem.
No centro das cidades próximas, as lindas casas antigas estão hoje abandonadas, as janelas e portas dos andares inferiores foram tapadas com tijolos e as dos andares cimeiros servem apenas de fuga para os ramos das árvores que já nasceram no seu interior.
Retratos de um país moribundo.

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08 dezembro 2008

O quarto de vestir

Os meus avós maternos eram transmontanos e eu recordo-me do tempo em que fazer a viagem de carro até à terra deles era um a autêntica aventura, impossível de ser feita sem muita paciência e uma caixa de comprimidos para o enjoo. Curva e contra-curva durante dezenas de infindáveis quilómetros eram um verdadeiro teste à resistência para os passageiros, principalmente os do banco de trás atirados de um lado para o outro do banco de dez em dez metros, ou menos.
Uma pequena parte da família ficou sempre a viver para aqueles lados, o que fez com que fossemos regularmente convidados para casamentos e baptizados. Compravam-se novas roupas, as senhoras escolhiam o melhor penteado e matutavam o que fazer para evitar que a viagem amarrotasse os tecidos das novas toilettes. O calor também não ajudava pois as festas eram invariavelmente no verão e os carros com ar condicionado ainda eram um luxo.
Certa vez, alguém se lembrou que não seria má ideia fazer a viagem com roupas confortáveis e parar alguns quilómetros antes do destino para vestir as da cerimónia. E assim se criou um hábito. A paragem, combinada com os vários carros que faziam a viagem juntos era feita numa velha casa de cantoneiro na berma da estrada.
Uns anos mais tarde foi reconstruída e recentemente fui reencontrá-la moribunda no mesmo local onde sempre esteve: a alguns quilómetros da chegada a Mesão Frio.

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