30 outubro 2006

Corridas nos degraus

Fiz a instrução primária em Luanda, na Escola nº 171, mesmo em frente ao cinema Tivoli, na Samba. A minha escola situava-se ao cimo de um imenso jardim público, rodeada por espaços relvados onde dava gosto brincar durante o intervalo. Não era uma escola típica do Estado Novo. Tinha uma escadaria com cerca de meia dúzia de degraus, de uma ponta à outra do edifício. Pelos cálculos que posso fazer a partir da minha memória visual, teria mais de vinte metros de comprimento.
Fui filho único até aos sete anos. Por isso, e também porque os meus pais tinham muitos amigos (naquela altura não havia televisão e as pessoas conviviam muito mais) que me ofereciam prendas, sempre tive muitos brinquedos. No meu aniversário, e logo de seguida no Natal, uma grande quantidade de novidades vinha juntar-se aos já existentes. Era bom mas dava-me também uma grande trabalheira. Sendo filho único, se queria ter companhia para brincar não tinha outra solução que não fosse chamar lá para casa os vizinhos que de repente se iam embora, deixando tudo para eu arrumar.
Os brinquedos preferidos dos miúdos da minha idade eram então uns carrinhos, de marca Matchbox, também conhecidos por DinkyToys, réplicas perfeitas dos carros verdadeiros. Tinha-os de todas as marcas, cores e tipos: uns que abriam as portas, outros aos quais se podia tirar a capota, etc.
É justamente aqui que se complementam nas minhas lembranças, a minha escola e os carrinhos. Durante os recreios, os meus colegas e eu inventámos uma brincadeira que consistia em corridas ao longo da escadaria. Empurrávamos cada um o nosso carrinho, à vez, com o objectivo de o fazer deslizar o mais longe possível em linha recta, ao longo do degrau. Os que caíssem para o degrau de baixo tinham de recomeçar tudo de novo desde a partida.
Dois carros meus destacavam-se pela firmeza na direcção e pela velocidade que atingiam, conseguindo percorrer assim distâncias muito maiores do que outros: um Ford Capri violeta e um Ford Mustang amarelo e preto, como aqueles que se vêm nos filmes, com o motor a aparecer pela abertura do capot. Este último foi todo raspado, um dia que me deu a maluqueira de o pintar de outra cor.
Ainda hoje os tenho, como podem ver, e de vez em quando entretenho-me com o Marcelo a ver se ainda “andam” como antigamente.
Nota: Este e outros Regressos, que irei deixando por aqui, podem não respeitar exactamente a realidade. São apenas as minhas lembranças contadas segundo o que hoje recordo. São o que resta do que vi com os olhos e do que gravei com o coração.

27 outubro 2006

27 Outubro: Parabéns para ti

Mais um aniversário teu que passamos juntos, embora nos vá fazer falta a alegria do nosso Marcelinho. E tudo por causa do “tal” vírus que bem podia ter escolhido outra altura para o “visitar”. E digo o “tal” porque para os médicos de hoje, das duas uma: ou é sempre o mesmo ou não lhes sabem sequer os nomes porque a culpa é sempre d”O” vírus. Ainda por cima este obriga-nos a afastar o nosso traquina de casa para impedir que o estúpido do bicharoco aproveite e ataque também a Luana.
Mais uma vez se confirma que para nós nada é fácil e muito menos previsível. A nossa vida tem sido sempre assim, complicada. Mas pelo menos não nos podemos queixar de monotonia.
Vamos tentar passar o que resta do teu dia da forma mais agradável possível e deixo-te muitas tulipas de que tanto gostas para te alegrar.
Um beijo.

23 outubro 2006

"Tenho uma tia que pinta!"

1998 - Expo 98 - Lisboa - Pavilhão de Angola
Todos temos histórias mais ou menos singulares e interessantes para contar um dia aos nossos netos, depois de um bom passeio de domingo à tarde e antes de uma aconchegante taça de chocolate quente ou de uma apetecível “cuca” gelada, conforme a latitude a que então nos encontremos. Esta é certamente uma das mais engraçadas e bem sucedidas da minha vida.
Quando visitei o pavilhão de Angola na Expo 98 em Lisboa apaixonei-me à primeira vista por dois quadros que se encontravam logo à entrada. A curiosidade levou-me, apesar de achar que o seu preço seria proibitivo, a perguntar quanto custavam e a resposta fez-me desistir, como previra, da fantasia de ver um dia qualquer uma das telas em minha casa. “Mas que bem que lá ficariam!”, ainda sonhei.
Mais de um ano depois, contei o sucedido a uma amiga angolana que vive em Lisboa e que me disse logo: “Tenho uma tia que pinta. Posso levar-te a casa dela e vais consolar-te de ver pintura africana. Queres ir?”. Aceitei de imediato.
Fui acolhido pela Arlete Marques e pelo marido como se fosse da família, que nós os angolanos somos assim!
Observei então os muitos quadros da autora espalhados pela casa mas, um pouco desiludido, reparei que os que vira até esse momento não correspondiam às expectativas criadas por diferirem bastante do estilo que eu aprecio. “Vejam também naquele quarto, onde guardo os mais antigos, de outra fase minha” sugeriu-nos.
Mal a porta se abriu, foi como se tivesse voltado a entrar no pavilhão da Expo. No meio de dezenas de quadros, lá estavam na parede em frente a nós, orgulhosamente, lado a lado, os “meus”. Não resisti e comprei um deles, por menos de metade do preço que tinham estado a pedir na Expo à revelia da autora, conforme ela me explicou.
Outro ano passou, estávamos já em 2000 e quando resolvemos mudar de casa, a Isabel lembrou-se que “na parede grande da sala” ficaria bem o outro quadro da Arlete. Peguei no telefone e soube que o “irmão” do nosso estava numa galeria em Setúbal mas que um estrangeiro o tinha já reservado: “Ficou de o vir buscar até amanhã mas tenho a impressão que não virá e se assim for, pode ficar com ele”.

Hoje, como podem ver estão ambos em nossa casa. Felizmente!

Obrigado Arlete por me ter seduzido com a sua arte e obrigado Rosa por me teres convidado a acompanhar-te.

E aqui fica o link para irem conhecer ou revisitar a artista, Arlete Marques.

17 outubro 2006

12 de Maio de 1946

O dia 12 de Maio de 1946 já havia nascido e o cais de embarque registava a azáfama característica dos dias de partida. À volta do majestoso paquete centenas de pessoas movimentavam-se num formigueiro contínuo. Umas entravam e saíam pelas pontes de cordas que ligavam o solo firme às portas do navio, outras procuravam desesperadamente a entrada certa como se um atraso as pudesse impedir de embarcar, outras corriam aparentemente sem sentido de um lado para o outro.
Alguns rapazes precipitavam-se sobre as pessoas para lhes carregar as malas em troca de uma moeda enquanto os “chauffeurs” paravam os carros junto ao cais para deixar os seus patrões, “gente bem” reconhecível pelas vestimentas e sobretudo pelo aparato dos adornos. As famílias despediam-se. Uns choravam, outros riam mas todos sabiam que a ausência seria longa e em alguns casos definitiva.
Naquele tempo, a viagem levava cerca de três semanas. Neste caso específico duraria, segundo os relatos que chegaram aos dias de hoje, exactamente vinte e um dias.
No dia 2 de Junho de 1946 chegavam a Luanda, passageiros desse paquete, a minha mãe (na foto, em cima do barril ladeada pelos pais, no dia do embarque), os meus avós e alguns parentes, iniciando assim uma “aventura” que haveria de marcar para sempre toda a família.

11 outubro 2006

O meu Mano

"…é que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há…"
Júnior, in calmarias.blogspot.com - 31.10.2005
Faz este mês um ano que me aventurei pelos caminhos da Internet na busca de um regresso às minhas origens. Tentei contactar pessoas que viveram ou vivem em Angola. Encontrei todo o tipo de gente.
Só não esperava encontrar um irmão.
Sim, um irmão, porque nestas equações sobre sentimentos o sangue não conta: quantos irmãos não se odeiam e quantos amigos não se amam?
Descobrimos ao longo deste ano coincidências nas nossas vidas que muitas vezes nos comoveram e algumas até nos arrepiaram.
Irmãos quase gémeos, ainda por cima com o mesmo nome?
Falamo-nos quase todos os dias mas ainda não tivemos oportunidade de trocar um abraço. Apesar disso, o meu Mano convidou-me hoje para ser o seu padrinho de casamento já que vai aproveitar a próxima visita a Portugal para oficializar o que não precisava de ser oficializado: a sua felicidade.
Estranho? Só para quem nunca bebeu da água do Bengo ou não conhece a palavra Amorizade.
“…é que hoje fui convidado para padrinho e distinção mais importante não há…”