10 junho 2007

Páginas da Vida

Esta é uma carta que decidimos, a Isabel e eu, enviar à SIC, a propósito da novela que actualmente está a ser transmitida.
O meu filho Marcelo, que fará 5 anos no dia 1 de Julho, é portador de Trissomia 21. Não tinha sido detectado antes do nascimento, pelo que não estávamos minimamente preparados para enfrentar o "problema".
As exaustivas pesquisas que efectuámos logo nos primeiros dias na Internet, em busca de informação que nos pudesse ajudar, permitiram-nos concluir rapidamente que não encontraríamos em Portugal verdadeiros especialistas na matéria. Apenas surgiu o contacto de uma associação orientada por um médico que ganhou alguma experiência ao tentar ajudar a própria filha, com mesmo problema, também conhecido por síndrome de Down.
A força interior com a qual aceitámos a condição “especial” do nosso filho permitiu-nos participar a sua chegada a todos os nossos amigos e conhecidos com absoluta naturalidade. Recebemos de imediato a resposta de um amigo, a quem ficaremos para sempre gratos, quase nos intimando a nos deslocarmos a Lisboa para conhecermos um casal que nos poderia ajudar, o que fizemos poucos dias depois.
Apresentaram-nos o programa de estimulação precoce do Instituto Véras – Centro de Reabilitação Nossa Senhora da Glória, do Rio de Janeiro, ministrado por um grupo de terapeutas e médicos que se desloca a Portugal duas vezes por ano para dar acompanhamento às crianças cujos pais orientam, e que é liderado actualmente pela Drª Conceição Véras.
Poderia enumerar pormenorizadamente e durante horas todos os tipos de exercícios e terapias que aplicámos ao longo destes 5 anos ao nosso filho a nível sensorial, motor, fisiológico e de inteligência. No entanto o mais importante será dizer que o Marcelo lê, desenha, pinta, corre, salta, fala, começa a aprender línguas estrangeiras e já adquiriu, segundo as suas educadoras portuguesas, as competências necessárias para entrar para a escola primária … e ainda não fez 5 anos! Enfim, faz tudo, e se calhar mais alguma coisa, como qualquer outra criança dita “normal” com a sua idade. E não é caso único entre os meninos seguidos por aqueles terapeutas: Afonso, Ana Rita, Diogo, e tantos outros.
Para que fique bem claro, o objectivo desta minha “manifestação” é apenas lamentar a forma como o tema da Trissomia 21 é abordado pela telenovela da Globo que actualmente é transmitida pela vossa estação, em horário nobre. Sem querer atribuir-vos a responsabilidade por tal abordagem, dado tratar-se inclusivamente de uma produção brasileira, é no entanto indesmentível que esta nem honra minimamente os portadores de Trissomia 21 nem o nível de conhecimento técnico existente no Brasil no que diz respeito ao desenvolvimento do potencial humano, sobretudo e em particular em crianças portadoras de Trissomia 21.
Embora aqui e ali haja referências a várias pessoas e à qualidade dos tratamentos existentes naquele país, o certo é que o papel foi atribuído a uma criança com um nível de desenvolvimento infelizmente muito primário, reduzindo assim as expectativas de tantos pais espectadores que poderiam ter encontrado algum alento e esperança no futuro dos seus filhos no caso de ter sido incluída uma segunda criança com um grau de estimulação superior. O que permitiria por um lado mostrar às pessoas que pode haver evolução nestas crianças e por outro fomentar uma interacção mais efectiva com os restantes personagens da história.
As telenovelas brasileiras transmitem normalmente algumas lições de vida e costumam provocar alterações de mentalidades quanto à aceitação e inserção das minorias. Nesta em particular, as dificuldades têm sido apresentadas como inevitáveis e incontornáveis às famílias que procuram na história um caminho a seguir ou apenas algum consolo ou amparo. Temo que a partir de agora as pessoas com T21 deixem de ser escondidas pelos pais, como durante tanto tempo se fez, mas passem apenas a ser vistas com simpatia e pena. E elas não precisam da nossa pena, antes pelo contrário, precisam que as estimulemos e “puxemos” por elas ainda mais. Precisam que as encaremos como são: “just people”.
Como foi possível a uma produtora que abordou de forma tão fiel e didáctica a homossexualidade, o alcoolismo, a toxicodependência e tantos outros, ter negligenciado a forma como retrata um assunto tão delicado e muito menos raro do que muitos possam pensar?
Para terminar, apenas algumas palavras para sublinhar que em Portugal o assunto é abordado de forma ainda mais leviana e redutora, recorrendo-se sempre à opinião das mesmas pessoas que contudo pouco ou nada têm contribuído para o esclarecimento deste tema: Bibá Pitta, que em minha opinião desgasta a imagem da filha, um bibelot que faz questão de segurar em qualquer foto social, Dr. Miguel Palha com todas as limitações técnicas que valha a verdade se esforça em atenuar e quem mais?
Para quando um debate “sério” sobre o tema?